Deísmo: a cosmovisão do Deus ausente
Seguindo a proposta de estudo e análise sobre Cosmovisões e dada a apresentação a respeito do Teísmo darei andamento apresentando uma cosmovisão pouco conhecida, mas que precisa ser apresentada e refutada.
Trata-se do Deísmo. E não devemos de modo algum pensar que pelo fato de nos dias de hoje tal cosmovisão não ser muito difundida, que a mesma não precisa ser examinada, até porque os ideais do Deísmo permanecem ativos.
Farei uma apresentação histórica sobre o Deísmo, mostrarei os principais expoentes de tal pensamento e os pontos totalmente contrários à fé cristã que tal cosmovisão apregoa.
Crenças e Histórico
Apesar de alguns pontos semelhantes entre o Deísmo e o Teísmo, é preciso ressaltar logo de início que as discrepâncias são o bastante para fazer de tais cosmovisões coisas totalmente distintas. Uma simples definição sobre o termo pode ser vista abaixo:
“O Deísmo (lat. deus, deus) é etimologicamente um cognato de Teísmo (gr. theos, deus), sendo que as duas palavras denotam a crença na existência de um deus ou deuses e, portanto, é a antítese do Ateísmo.” [1].
Embora creia na existência de Deus, o Deísmo difere do cristianismo ortodoxo por apresentar a cosmovisão onde Deus fez o mundo, mas que não interfere e interage na criação. No Teísmo cremos que o Senhor interfere na criação de modo sobrenatural, ou seja, é a intervenção de Deus em nosso mundo natural, ou simplesmente “milagres”. A crença deísta é que não existem milagres e interferência de Deus na criação. No Deísmo, Deus criou todas as coisas, mas as deixou para que, mediante as imutáveis leis da natureza, sigam seu curso.
Deus é um fazendeiro que não se importa com seu campo. Ou mesmo como um exemplo muito usado para definir a cosmovisão deísta: Deus é como um relojoeiro que deu corda no relógio por Ele feito e o deixou para funcionar, sem se interessar em intervir. Vejamos:
“Deísta é alguém que aceita Deus, mas descarta a intervenção divina no mundo. Mais importante que isso, a posição do deísta não é apenas que Deus não realizou nenhum milagre, mas que seria contra a própria natureza divina realizá-los. Deus criou uma ordem natural, e seria irracional e, conseqüentemente, impossível para Ele quebrar a ordem da natureza criada por Ele mesmo.” [2]
Outro grande erro do Deísmo é o conceito de autoridade. Enquanto que no Teísmo a autoridade é a Palavra de Deus inspirada e o testemunho do Espírito Santo, o Deísmo tem como autoridade o primado da razão. Desta forma os deístas até davam crédito ao cristianismo como religião, mas reinterpretaram de modo radical a teologia ortodoxa cristã. Na contramão da parceria sadia entre fé e razão, os deístas relegaram ao Espírito de Deus lugar secundário e substituem a revelação especial das Escrituras pela razão humana.
Além disso, negam a existência da Trindade, a encarnação (ou seja, o nascimento do Messias, Jesus Cristo, o Filho de Deus), a autoridade divina da Bíblia, e a expiação através de Cristo.
Todo este sistema de crença faz do Deísmo algo, no mínimo, estranho. Mesmo alegando a crença em Deus, o Deísmo se aproxima muito do Agnosticismo e Ateísmo. Um Deus que não se envolve com Sua criação, faz do todo um vazio angustiante. Faz de Deus um ser distante que não se interessa pela humanidade, que não se preocupa com o pecado e que, como já dissemos, não participou do milagre da encarnação.
No Deísmo não temos o milagre da vinda miraculosa e providencial do Filho, para expiação, redenção e justificação, reconciliando todas as coisas; logo, não temos o milagre da ressurreição, e nem mesmo a presença do Espírito Santo.
Este “relógio” tende a travar sem a graciosa intervenção do relojoeiro. Enquanto no conceito panteísta a ênfase é muito grande quanto à imanência de Deus, o deísta faz questão de enfatizar a transcendência de Deus, fazendo dEle um “Deus ausente”, tão ausente que se esquecem que o Senhor está imanente à criação em Sua Providência e como um Redentor na pessoa de Jesus Cristo.
A origem desta cosmovisão se deu no contexto do Iluminismo, que resumidamente pode ser definido:
“O Iluminismo do século 18 foi um movimento de idéias que buscava libertar a humanidade do erro e do preconceito e alcançar a verdade, o que, por sua vez, produziria liberdade. Muitos pensadores iluministas tinham como alvo a religião, pois eles a consideravam algo que incorporava o erro e o preconceito tão abominados. Em especial, consideravam o cristianismo e todas as outras religiões irracionais e inadequadas à época cientifica. O Iluminismo procurava explicações racionais para tudo o que era real, e a religião não era exceção.” [3]
O cenário armado da racionalidade levou o Deísmo à ênfase no aspecto puramente racional da religião. São também definidos como os pensadores religiosos europeus e norte-americanos dos séculos XVII e XVIII. Os deístas procuraram, diante do cenário Iluminista, adaptar a fé cristã a seu pensamento, sob o medo de que o cristianismo se tornasse irrelevante para o novo mundo (pós-Iluminista). Vale a reflexão interessante de notar como as tentativas de adaptação do cristianismo à cultura vigente podem ser trágicas.
É evidente que existe todo um panorama ao qual o surgimento do Deísmo está relacionado. A questão dogmática desta cosmovisão é o resultado da mescla de visões científicas-filosóficas, surgindo na Inglaterra do século XVII e se propagando pela França, Alemanha e Estados Unidos. [4]
Temos em Herbert de Cherbury (conhecido também como Edward Herbert, lord de Cherbury) (1583-1648), a figura precursora do Deísmo, conhecido como “pai do Deísmo inglês”. De certa forma, considerava a fé comum como irracional e lutava contra tal. Em sua linha de pensamento, propôs cinco “noções comuns da religião”, expostas pelo teólogo e historiador brasileiro Alderi Souza Matos:
“Cherbury propôs cinco ‘noções comuns da religião’ que são universais, racionais e naturais: 1. Há um Deus supremo; 2. Esse Deus deve ser adorado; 3. A essência da prática religiosa é a conexão entre virtude e piedade; 4. Os vícios e crimes humanos são óbvios e devem ser expiados pelo arrependimento; 5. Após esta vida haverá recompensas e castigos. Segundo Lorde Herbert, essas noções abrangiam todos os lugares e todas as pessoas. Ele se considerava cristão, embora fosse cético quanto a certas doutrinas, como a da Trindade. Seu livro foi amplamente lido no século XVII e lançou as bases do Deísmo.” [5]
O impacto que o ideal deísta tinha encontrou solo fértil influenciando o pensamento de muitos nomes amplamente conhecidos e sobre fatos históricos extremamente relevantes. Deístas como Charles Blount (1654-1693), John Tolard (1670-1722) e Lord Shaftesbury (1671-1713) levaram de modo ferrenho a filosofia deísta afirmando que o lado de mistério do cristianismo não comprovado por pressupostos racionais deveria ser descartado.
O Deísmo foi exportado da Inglaterra para França, vigorando seu ideal entre os filósofos do século XVIII. Dada a influência dos escritos de Herbert e Shaftesbury, traduzidos ao público francês, tivemos obras impregnadas com o pensamento deísta francês levadas ao público inglês, de autores como Rousseau (Jean Jacques Rousseau, 1712-1778) e Voltaire (François-Marie Voltaire, 1694-1778), que apesar de muitos não os considerarem deístas, tinham o pensamento norteado por tal cosmovisão.
O impacto foi tamanho que “na França a Igreja Católica Romana lutava contra esses deístas, livres pensadores que acabaram exercendo uma influência fortíssima sobre a Revolução de 1789, que se refletiu em toda a Europa”. [6]
Por fim, a grande difusão deísta se desdobrou com a imigração de oficiais ingleses aos Estados Unidos por força da guerra de 1756-1763. O pensamento deísta influenciou Benjamin Franklin (1706-1809), Stephen Hopkins (1707-1785), Thomas Jefferson (1743-1826) e Thomas Paine (1737-1809). Paine é considerado o grande difusor do Deísmo nos Estados Unidos por ser fervoroso militante. Seu livro “The Age of Reason: Being an Investigation of True and Fabulous Theology” (A Era da Razão: uma Investigação sobre a Teologia Verdadeira e a Fabulosa) foi obra de defesa da cosmovisão deísta, com propósito de alcançar os mais simples leitores, com tentativa de destruir as afirmações sobrenaturais apregoadas pela igreja.
Impactos
Como já havia mencionado, poucos são os que conhecem em nossos dias a cosmovisão deísta e muito menos os impactos que o surgimento do Deísmo causou. É importante destacar os impactos e como esta cosmovisão se “dissolveu”:
“Os deístas acabaram organizando sua própria denominação religiosa. Em 1774 surgiu em Londres a Capela de Essex, a primeira congregação unitária, ou seja, não-trinitária. Em 1785, a King’s Chapel, em Boston, antes anglicana, tornou-se a primeira igreja unitária dos Estados Unidos. Esse fenômeno se repetiu na década de 1790 com muitas igrejas congregacionais da Inglaterra e da Nova Inglaterra. Finalmente, em 1825 foi organizada uma nova denominação, a Associação Unitária Americana, tendo como seminário oficial a Escola de Teologia de Harvard. Todavia, a maior parte dos deístas não se filiou a essas igrejas.
O Deísmo se infiltrou silenciosamente na vida política e religiosa dos Estados Unidos. Seu Deus se tornou o Deus da religião civil americana, como se pode ver no lema nacional: ‘Em Deus nós confiamos’. Foi também o precursor da teologia liberal dos séculos XIX e XX”. [7]
Ainda segundo Ferreira e Myatt, o Deísmo “foi um precursor importante da teologia liberal que surgiu no século XIX (...) Visto que o conceito de Deus, no Deísmo, não serve para nada (...) o naturalismo surgiu em seu lugar”. [8]
Logo, apesar de dificilmente encontrarmos uma pessoa que se defina como deísta, os ideais do Deísmo estão presentes no cotidiano de muitas pessoas. Como cristão, é preciso batalhar pela Verdade contra os erros deístas.
Considerações gerais
Alguns reconhecem no Deísmo algumas contribuições, tirando algo de proveitoso desta cosmovisão. O uso equilibrado da razão em assuntos religiosos seria um desses pontos úteis, aplicando a razão contra muitas falácias feitas em nome de uma fé cega.
De forma bastante prática, ninguém entra num elevador no 25º andar de um prédio sem ter uma boa dose de bom senso e razoabilidade em saber que chegará sob segurança ao térreo. Da mesma forma em matéria de fé, não se deve abraçar qualquer “ultra” revelação (assuntos revelados fora das Escrituras) sem ponderar sobre os mesmos. Nesta matéria os deístas tiveram como mérito no passado expor muitas fraudes e superstições religiosas.
Além disso, a prerrogativa da racionalidade gerou saldo positivo no campo da crítica textual e exegese.
Outros defendem que o Deísmo possibilitou reflexão no aspecto da tolerância religiosa, o que possibilita um diálogo interreligioso respeitoso. Vale sempre lembrar e enfatizar: tolerância não é igual a concordância, sendo assim, é possível dialogar de modo respeitoso sem que isso implique em concordância.
O Espírito Santo nos convenceu plenamente da veracidade da fé cristã e este testemunho poderoso é único. Entretanto, o mesmo Espírito nos capacita e instrui a examinar matérias de fé, e neste sentido os fideístas erram ao não fazer uso da razão.
Apesar disso, o Deísmo é uma cosmovisão que merece ser rechaçada. Como visto acima, possui inúmeros pontos que divergem da fé cristã e estão sob crítica.
Primeiro, é incoerente pensar que um ser poderoso o bastante para criar o universo não seja capaz ou não queira intervir na ordem da criação, ou seja, efetuar milagres. Já que Ele criou a água, qual a dificuldade de dividir a mesma ao meio ou permitir que alguém caminhasse sobre ela? Se Deus criou a matéria e a vida, qual a dificuldade de multiplicar pães e peixes? Para um Deus que criou o universo sem material preexistente, ou seja, ex nihilo, do nada, qual o problema ou dificuldade em fazer voltar à vida um ser já morto, fazer o Messias nascer a partir de uma virgem e após a morte Ele ressuscitar em esplendor e majestade? Diante do grandioso milagre da criação, milagres “menores” seriam problemas e dificuldades?
Segundo, para um Deus que criou o universo e deu à humanidade a oportunidade de viver e multiplicar-se num mundo sob boa dose de bem-estar, qual o problema deste Deus relacionar-se com as pessoas que Ele mesmo colocou na criação de todas as coisas? Um Deus que se preocupou com coisas tão grandes, não se preocuparia com detalhes menores? Pensemos neste maravilhoso e poderoso Deus, que se preocupou com a posição de Alfa-Centauri, fazendo dela a mais brilhante estrela da constelação de Centauro e a terceira mais brilhante do céu, e ao mesmo tempo se preocupa com o íntimo de cada pessoa que habitou, habita e habitará o planeta que Ele criou. Que amor é esse?
Por fim, muito se criticou sobre o texto bíblico no início do Deísmo. Os racionalistas alegavam que a Bíblia é fraudulenta e intencionalmente manipulada. Muitos alegavam manipulação do texto profético e que os verdadeiros autores não eram os que de fato aparecem no texto bíblico. No entanto, a arqueologia prova a cada dia a veracidade da Bíblia. As “pedras clamaram” e mais de 25 mil descobertas arqueológicas já foram realizadas sobre o relato do mundo antigo em consonância com a Bíblia [9].
Infelizmente, todo ataque deísta contra os ensinamentos cristãos, como na maioria das cosmovisões conflitantes, não passam de erros cometidos em função de um conhecimento superficial e ingenuidade sobre a Verdade que é Jesus Cristo.
Providência Divina
Deus não para de trabalhar (Jo 5.17)! Dentro da Teologia Cristã, o ato de Deus sustentar todas as coisas é chamado de providência. O Criador preserva tudo, opera em tudo e tudo está patente ao Seu controle. Na doutrina da providência, temos a soberania de Deus e a criação em conjunto.
A doutrina da providência trabalha no sentido de mostrar como Deus conduz todas as coisas segundo seu propósito perfeito:
“Ela procura dar resposta para a pergunta sobre se há uma ordem por detrás de todos os acontecimentos, ou se tudo acontece de modo aleatório (...). Na Escritura, podemos ver três modos nos quais a providência divina se manifesta: na preservação, na concorrência e no governo. Esses três modos providenciais de Deus revelam a maneira e o propósito pelo qual o mundo continua a existir, após ter sido criado, e espantam toda noção de acaso ou fatalismo” [10].
Em resumo:
Deus preserva todas as coisas: Hb 1.1-3; Ne 9.6; Sl 145.15-16; Sl 104.27-29; Mt 6.26; Mt 10.29-30.
Deus age em todas as coisas: At 17.28; 1Co 15.10; Is 45.1-2; Gn 45.8; Lc 22.21-22.
Deus governa todas as coisas: Ef 1.5; Rm 12.2; Rm 8.28.
“Porque desde a antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu um Deus além de ti, que trabalhe para aquele que nele espera”. Is 64.4
Não existe sorte, mero acaso ou abandono de Deus. Existe Sua providência em tudo, e por isso, e por quem Deus de fato é, somos gratos, O adoramos e temos comunhão com Ele.
Toda honra e glória ao Senhor!
Fonte: http://www.internautascristaos.com.br/
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